Dos temas levantados pela vitória de Barack Obama, a questão racial foi a que mais repercussão teve no Brasil, pelo menos entre os militantes da causa negra. Em meio ao debate sobre as cotas, vi adeptos e adversários da medida usando o fenômeno Obama para reforçar argumentos opostos. Como em todas as polêmicas acirradas, sobretudo quando ideologizadas, esta também tem servido mais para reafirmar do que para mudar convicções adquiridas, sem dar margem a dúvidas. Nos EUA, o ilustre filho de um cruzamento étnico que mistura sangue africano e americano ora é visto como mestiço ou mulato, exemplo de uma miscigenação que lembra a brasileira, ora como "o primeiro negro" presidente. Na campanha, ele reclamou de ter sido criticado por ser negro de menos e por ser negro de mais. O lingüista Noam Chomsky chegou a classificá-lo como "um branco que tomou muito sol". No Brasil, mais do que isso, o que se discute é a política de ações afirmativas para diminuir as escandalosas desigualdades econômicas e sociais que atingem os negros há séculos. O debate não é simples, porque há negros que são contra a política de cotas, e brancos, a favor. O próprio Obama é um crítico do sistema, que ele acha que deve ser revisto. Aliás, ao propor a superação, o "pós-racial", ele contrariou todo o discurso histórico de defesa de uma identidade negra e provocou reação em importantes aliados de cor, como o reverendo Jesse Jackson. Entende-se que, depois de meio século de lutas e avanços, os afro-americanos tenham hoje um presente que lhes permite cuidar do pós — uma situação bem diferente da nossa. Aqui, nem a "democracia racial", nem o "racismo cordial" foram suficientes para eliminar a discriminação real em relação aos afro-brasileiros. O que fazer como reparação? Tenho minhas dúvidas. Filho de mãe miscigenada, não sei se a solução é adotar cotas nas universidades — por que não combater as desigualdades em todos os níveis, a começar pelo ensino básico? —, mas também não vejo ser oferecido nada em seu lugar capaz de fazer os negros daqui sonharem, já não digo com a presidência da República, mas com um lugar nos partidos, na academia, no Estado — "de forma altiva, não subalterna", como diz o jornalista Dojival Vieira, da agência Afropress. É ele que lúcida e corajosamente escreve: "No Brasil, o discurso 'pós-racial' de Obama não faria o menor sucesso e não teria o menor ibope, pelo menos entre os nossos autoproclamados líderes, porque, para a maioria deles, a raça continua constituindo a razão de ser do movimento e alguns vão além e flertam abertamente com a idéia de um Brasil birracial, ou seja: nosso papel seria superar a supremacia branca para afirmar a supremacia negra, que é mais do que um equívoco político: é uma estupidez que nos botaria às portas da barbárie fratricida."
Texto de Zuenir Ventura publicado no Globo de hoje
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